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Graciliano Ramos como prefeito desnuda o ‘homem cordial’ – 24/05/2024 – Mercado


Em 1936, na obra clássica “Raízes do Brasil”o historiador Sérgio Buarque de Holanda escreveu que na administração pública nacional ocorreu, ao longo de nossa história, “o predomínio constante das vontades particulares” em detrimento de critérios objetivos e impessoais de gestão.

Esse é o ambiente em que o “homem cordial” conceituado pela Holanda sempre ganhou cargas, privilégios e poder, movido pela influência de suas relações pessoais.

Oito anos antes, o então autor de contos e sonetos Graciliano Ramos nomeado prefeito da cidade alagoana de Palmeira dos Índios , a 135 quilômetros de Maceió. No entanto, ele deixou relatórios de prestação de contas que mostram na prática como a “cordialidade” definida por Holanda afeta às finanças e à administração pública.

Os documentos escritos pelo chefe do Executivo municipal, então com 35 anos de idade e antes de se lançar romancista, foram reunidos agora no livro “O Prefeito Escritor”, lançado pela editora Record com prefácio aprovado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Com ironia e humor, Graciliano usou os documentos oficiais para denunciar o assédio dos “homens cordiais” do município e os obstáculos para administrar uma cidade sob ambiente patrimonialista.

A obra traz uma prestação de contas aos vereadores do município na qual o alcaide expõe, por exemplo, as dificuldades para a cobrança de impostos. “O contribuinte, que se contribui bem para com a repartição estadual e federal, está habituado a pagar à Prefeitura se quer, como quer e quando quer. Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros e contribuintes, mais ou menos compadres .”

Graciliano conta que a adoção da austeridade no trato com a coisa pública trouxe prejuízo pessoal.

“Consegui salvar em setenta dias 9:539$447. É pouco. Entretanto fiz esforço imenso para acumular soma tão magra, para evitar que ela escorregasse de cá: suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos.”

O então prefeito não poupou os familiares em seus escritos. “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetentes do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que escolheram, coitados.”

Um apontamento de Ramos lembra as despesas atuais sem sorteio técnico ou justificativa de necessidade feita por meio de emendas parlamentares no Brasil. “Acho absurdo depender de um município que até agora nada gastou com a instrução 2:000$000 para manter uma banda de música. Dois contos de réis em letra de forma.”

A política faz “pão e circo” revelada pelo autor também encontra paralelamente hoje nas emendas que os congressistas direcionam à estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) para a construção de quadras poliesportivas em seus redutos eleitorais. Ramos mostra que, além de supérflua, há uma despesa com uma banda que permite desvio de recursos.

“Chamo a atenção do Conselho para o lançamento que existe à folha 179 do livro-caixa, com data de 4 de janeiro: ‘Importância paga a Manoel Orígenes para fornecimento de 23 fardamentos para a banda de música municipal – 1:152$000’. A despesa não foi autorizada, os fardamentos não foram entregues.”

Outro capítulo de um relatório, intitulado “Pobre povo sofredor”, nos remete ao Brasil em que setores econômicos ineficientes brigam por isenções fiscais. “É uma classe interessante de contribuintes, módica em número, mas bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo.”

Com a ironia que marca seus documentos oficiais, o então prefeito assinalou que “bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene”. “É exigente e resmungão. Como ninguém ignora que não se obtém de graça as coisas úteis, cada um dos membros desta classe respeitável acha que os impostos devem ser pagos pelos outros.”

A exemplo da cidade de São Paulo, que sofreu recentemente com apagões de energia elétrica, Palmeira dos Índios também fez a reclamação do setor, segundo Ramos. “A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à clareza, julgo que observaram coisas às escuras. É um ‘blefe’. Pagamos até a luz que a lua nos dá.”

No relatório ao governo de Alagoas, de 1929, Ramos já revelava atenção com situações mostradas em sua obra mais conhecida, “Vidas Secas”, de 1938. “A população minguada, ou emigrava para o sul do país ou se fixava nos municípios vizinhos, os povoados que nasceram perto das fronteiras e que eram nós umas sanguessugas Vegetavam em lastimável abandono alguns agregados humanos.

O livro traz uma cronologia útil para conhecer os passos que levaram Ramos a ser político e depois romancista. Ele renunciou ao cargo de prefeito em abril de 1930, logo após completar dois anos de mandato, e lançou seu primeiro livro, “Caetés”, três anos depois.

É difícil acreditar que a leitura dos relatórios de prestação de contas não seja maçante, mas os documentos elaborados pelo prefeito então trazem a expectativa, a cada página, de novas revelações sobre picaretas, picaretagens e outras mazelas da administração pública.



FOLHA DE SÃO PAULO

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