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Transição energética inclui mudança de chão de fábrica – 06/03/2024 – Mercado


Doutora na área de energia, a engenheira Rosana Santos tem uma trajetória longa e diversa no setor. No Ministério de Minas e Energia, foi coautor de um projeto de eletrificação rural, iniciado no governo de Fernando Henrique Cardoso, que virou o Luz para Todos nas gestões seguintes do PT. Na linha de frente do programa, negociou com o Congresso e empresas. No setor privado, há 15 anos, onde passou por empresas como EDP e Alstom.

Agora, à frente do Instituto E+ desde 2022, trabalha para ampliar os horizontes do setor frente ao desafio das mudanças climáticas. Uma primeira tarefa tem sido intensificada participação das indústrias no processo.

“Tem muito grupo de trabalho que acha ser suficiente mudar o combustível, como se a economia fosse simplesmente se adaptar a essas novas energias. Precisa mudar processos produtivosmuitas vezes, mudar o chão de fábrica, criar a infraestrutura e novos hubs”, afirma.

Na avaliação de Santos, as ações ambientais podem ser aceleradas se avaliadas no contexto econômico mais amplo.

“O cumprimento de nossas metas de descarbonização precisa vir junto com o desenvolvimento e com o potencial de recursos que temos —e não falo apenas de recursos renováveis, mas recursos humanos, minerais, portos, parque industrial, um conjunto de características que podem nos levar além deste momento”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Santos concedeu à Folha.

O E+ está muito focado na transição energética para a indústria. Podia explicar a razão dessa escolha?
A gente entende que a transição energética é um meio, não um fim. Tem muito grupo de trabalho que acha ser suficiente mudar o combustível, como se a economia fosse simplesmente se adaptar a essas novas energias. Não é assim. Precisa mudar processos produtivos, muitas vezes, mudar o chão de fábrica, criar a infraestrutura e novos hubs. A própria lógica da transição energética vai exigir um planejamento diferente para a infraestrutura. Se vai usar muita biomassa, é preciso planejado para que o hub industrial fique mais próximo da geração.

E por que indústria? Porque a descarbonização pode ajudar a reverter o processo de desindustrialização que o Brasil sofreu. Nos anos de 1980, o PIB industrial era mais ou menos 40% do PIB total. Hoje, dá 10%, 12% no máximo. Além disso, houve perda de complexidade. No setor têxtil, por exemplo, a gente era um grande exportador de tecido, hoje, é de algodão. Ou seja, a gente andou para trás na cadeia de valor.

A indústria já descobriu o potencial dessa oportunidade?
Uma das nossas funções mais nobres é divulgar essa oportunidade. Temos notado que quando a gente fala que o Brasil pode ir além da transição energética e virar um hub de exportação de produtos de baixa emissão —não em tudo, mas em alguns setores— chamamos a atenção.

O Brasil não precisa cumprir por cumprir uma NDC, (sigla em inglês para contribuição nacionalmente determinada, ou seja, a meta apresentada por cada país no Acordo de Paris). A gente já tem uma matriz energética muito verde.

O cumprimento de nossas metas de descarbonização precisa vir junto com o desenvolvimento e com o potencial de recursos que temos —e não falo apenas de recursos renováveis, mas recursos humanos, minerais, portos, parque industrial, um conjunto de características podem nos levar além deste momento. Não estou dizendo que a gente não deve ser solidária com a urgência global, mas entendo que, para que essa agenda aconteça, é preciso colocar sentido econômico.

Quando você diz sentido econômico fala de trazer ganho financeiro para o país?
Sim. Ganhos financeiros, Empregos de qualidade para nossa juventude têm um horizonte de desenvolvimento de carreiras e aumento do PIB industrial, que leva a aumento de arrecadação e dinamiza toda a economia. O Brasil é um dos únicos países do mundo que tem condições de cumprir as NDCs e ir além, ganhando dinheiro no processo.

A questão do hidrogênio verde a partir da eletrólise é um exemplo. Há três ou quatro fabricantes de eletrolisadores no mundo. Se o Brasil focar apenas na produção do hidrogênio vai ficar dependente desses fabricantes.

Quais seriam os materiais com potencial?
A gente tem uma ideia, mas isso precisa ser conversado com a indústria porque, às vezes, há uma boa ideia teórica que na prática não é viável. Dito isso, internacionalmente, o que mais se olha é aço e cimento. Depois, fala-se muito em combustíveis de veículos leves e de carga. Nós estamos convencidos de que para o Brasil a solução será o veículo híbrido.

Tem também o SAF [sigla em inglês para combustível sustentável de aviação]. O SAF é uma ponta de globalização muito forte para o Brasil porque há muita demanda. A escala para a adoção mundial já foi introduzida pela IATA [associação do setor]é como se fosse uma escadinha, mas até para esse primeiro degrau já falta combustível.

O Brasil já tem iniciativas. O SAF a partir de etanol de segunda geração foi reconhecido agora, mas tem uma lista de outras rotas que o mundo não registra por desconhecimento e por recebimento de como a biomassa do combustível foi gerada. Há medo de que possa ser de área com desflorestamento.

Tem protecionismo isso?
Tem, mas eu entendo. O cara vê que outro país consegue produzir mais rápido e melhor e que vai perder mercado e empregos na sua geografia. A proteção é uma tendência nesses casos. Cabe a nós, Brasil, bater na porta, e, se colocar em barreiras, fazer critério também.

Uma sra. abordamos a tendência local pelo veículo híbrido. O mercado interno brasileiro segura a produção de veículos híbridos ou movidos a etanol, diante da tendência de que os maiores mercados do mundo estarão com uma frota eletrificada em algumas décadas?
Será? A discussão do carro híbrido começa a pulular em vários países, inclusive nos Estados Unidos. Grandes montadas estão dando um passo atrás para olhar se é só o carro elétrico.

Além disso, é mais rápido tirar o carro híbrido da prateleira do que montar toda a infraestrutura para um carro elétrico rodar grandes distâncias; para isso, as estradas precisam ter centros de carregamento e a rede precisa suportar. Tem um tempo também para carregar a bateria e já se imagina que será preciso ter uma logística para a troca de baterias. Você chega no posto, deixa a bateria usada e pega uma carga. Isso exige todo um novo mercado de logística reversa e uma nova indústria. Reciclar bateria não é simples, é energeticamente intensivo [consome muita energia] e depende de mineração de lítio, o que por si só é complicado.

Tem também a questão do impacto com a escala. O impacto é bem diferente quando se faz uma coisa aqui e outra ali e quando precisa adotar em larga escala. Por isso, o combate às mudanças climáticas já passou da fase de testes tecnológicos; agora, exigem medidas estruturantes.


Raio-X | Rosana Santos, 57

Atua há mais de 30 anos no setor energético. É formado em engenharia elétrica pela Poli USP (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo), tem mestrado em engenharia elétrica, também pela Poli, e em energias renováveis, pela Universidade de Oldenburg (Alemanha), além de doutorado em energia pelo IEE (Instituto de Energia e Ambiente) da USP. No Ministério de Minas e Energia, foi coordenadora do Programa Luz para Todos. A partir de 2006, atuou por 15 anos no setor privado, passando por grupos como EDP e Enel e fabricantes de equipamentos como Alstom. Foi conselheiro da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica) por 13 anos.



FOLHA DE SÃO PAULO

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