domingo, outubro 6, 2024
InícioECONOMIAA irretroatividade do entendimento do STF sobre apropriação indébita de ICMS -...

A irretroatividade do entendimento do STF sobre apropriação indébita de ICMS – 21/06/2024 – Que imposto é esse


Ó STF (Supremo Tribunal Federal), na controversa decisão proferida no recurso de Habeas Corpus nº 163.334, foi julgada configurar crime de apropriação indébita ou não recolhimento do ICMS própriomesmo nas hipóteses em que foram declaradas.

Em suma, solidificou-se o entendimento de que a venda de mercadorias com o ICMS embutido no preço, sem o pagamento ao Estado do tributo correspondente, se realizado de maneira reiterada, caracterizando o crime previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/90, ainda que o tributo tenha sido devidamente declarado ao Fisco.

A decisão representa uma mudança significativa e controversa no entendimento jurisprudencial sobre o tema.

Deixando de lado o alargamento ilegal do tipo penal elevado pela decisão e partindo do pressuposto de que a conduta de que vende mercadorias sem o recolhimento do ICMS em operações próprias pode se amoldar ao crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, é inegável que esse entendimento só poderia ser aplicado para fatos futuros, posteriores à mudança de interpretação pelo STF, sob pena de violação de princípios constitucionais e penais fundamentais.

É das lições mais elementares do direito a irretroatividade da lei penal mais grave. Esse princípio, consagrado no Artigo 5º, XL, da Constituição Federal, estabelece que a lei penal mais severa não pode retroagir para prejudicar o réu. Isso significa que uma pessoa não pode ser punida se a conduta por ela praticada não foi considerada criminosa no momento em que ocorreu. Garanta-se, assim e em termos simples, que ninguém seja surpreendido por uma mudança súbita das regras do jogo.

A garantia da irretroatividade da lei penal mais grave, como parece óbvia, tem como objetivo tanto proteger o cidadão contra arbitrariedades do Estado, como garantir a estabilidade e a previsibilidade do ordenamento jurídico: com base em regras pré-determinadas, o cidadão pauta seu comportamento, saber do que pode ou não acarretar responsabilidade penal.

A mesma lógica que embasa a irretroatividade da lei penal mais grave deve, por coerência, orientar as mudanças de entendimentos jurisprudenciais que impliquem na alteração sobre a tipicidade penal de uma conduta.

Assim como uma lei penal mais severa não pode retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência, uma interpretação jurisprudencial mais ampla, que dê contornos infratores para conduta anteriormente considerada penalmente irrelevante, também não pode ser aplicada retroativamente, sob pena de violar os mesmos princípios constitucionais e gerar insegurança jurídica ainda maior.

Ora, as decisões judiciais, justamente por interpretarem a lei, servem como verdadeiro guia de conduta, dando aos indivíduos a exata compreensão do que é considerado legal ou ilegal. Desta forma, os processos judiciais não apenas informam as partes envolvidas num processo específico, mas também orientam todos os membros da sociedade.

Uma consulta rápida ao repositório jurisprudencial dos Tribunais brasileiros revela que até o final de 2019 eram inúmeras as decisões judiciais —inclusive do STJ e do STF— dizendo que “O comerciante que não recolhe o ICMS, dentro dos prazos que a lei lhe assinala, não comete delito algum. Muito menos o capitulado no art. 2°, II, da Lei nº 8.137⁄90” e que “Nunca esse inadimplemento poderá conduzi-lo a uma publicações criminais… Porque sua conduta não é típica. E, sem tipicidade, não pode haver crime, nem muito menos publicações criminais”.

É inegável que esse entendimento —majoritário até o final de 2019— criou uma expectativa legítima no imposto de que, ao declarar o ICMS próprio e não recolhê-lo, não estava cometendo qualquer crime.

Deixando mais uma vez de lado as muitas críticas à ginástica interpretativa que fundamentaram a mudança de entendimento jurisprudencial, o mínimo que se esperava é que a decisão do STF fosse modulada para atingir apenas fatos futuros, garantindo estabilidade e previsibilidade ao sistema jurídico.

Não obstante, o que ocorreu foi exatamente o oposto. Naquele próprio caso, a Suprema Corte, em que pese diante de conduta praticada à época em que a maioria dos Tribunais entendeu por sua atipicidade, entendeu estar configurado o crime do art. 2º, inciso II, da lei 8.137/1990 e manteve a ação penal movida contra empresário que não recolhaa ICMS “de forma contumaz”.

O entendimento aplicado nos tribunais inferiores e a partir do julgamento do já referido RHC 163.344, pipocaram centenas de acusações criminais por apropriação indébita de ICMS por fatos ocorridos ao tempo em que o entendimento jurisprudencial dominante era no sentido de que “aquele que declara o ICMS devido pela própria empresa, porém deixa de recolher os valores aos cofres públicos… não incide na figura típica do artigo 2º, inciso II, da Lei n.º 8.137/90”.

Ao adotar essa nova interpretação, os Tribunais estão, na prática, impondo tolerância retroativa a condutas que anteriormente eram consideradas lícitas, com base no entendimento jurisprudencial consolidado da época.

Além disso, ignoram a existência do erro de destituição, previsto no artigo 21 do Código Penal, que exclui a culpabilidade do agente quando ele envelhece com base na interpretação equivocada da lei, imaginando lícita a sua conduta. Ora, se até mesmo os Tribunais —inclusive os Superiores— titubeavam quanto à correta interpretação do art. 2º, II, da Lei 8.137/90, dizendo ser atípico o não recolhimento de ICMS, como então processar e condenar criminalmente alguém por esses fatos exatos?



FOLHA DE SÃO PAULO

ARTIGOS RELACIONADOS
- Advertisment -

Mais popular