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Como foi o tempo da URV, que antecedeu o Real – 27/06/2024 – Mercado


Operações relativamente simples, como a compra de uma roupa ou de itens de mercado foram mais confusas no final do primeiro trimestre de 1994. O Brasil vivia um ciclo longo de inflação descontrolada, a moeda era o cruzeiro real (coloca em circulação apenas alguns meses antes , em agosto de 1993) e a nova, o real, estava prestes a chegar.

Antes dele, porém, um indexador foi usado como transição. A URV (Unidade Real de Valor) entrou em vigor no dia 1º de março de 1994 valendo CR$ 647,50. Naqueles dados, o salário mínimo passou a ser de 64.797 URVs. O valor final do piso, ainda em cruzeiro, era ajustado diariamente, conforme a nova URV saía.

Ó Banco Central divulgava diariamente a variação do dia seguinte a partir de uma média de três índices. A ideia era refletir a variação de preços até que o real se tornasse a moeda oficial.

Na edição da Folha de 1º de março, entidades criticaram a adoção da conversão, algumas apostaram até o fracasso do indexador. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) recomendou cautela aos empresários e montadoras que avaliassem fixar o preço em URV a partir de uma média.

Eram tempos de muitas dúvidas.

Para o designer gráfico Paulo André Santiago, 42, a unidade de referência de valor à época era o preço de revistas e gibis na banca que costumava frequentar com os amigos.

As memórias do tempo, conta, são algo confuso, mas ele lembra como era difícil entender se o dinheiro –uma pequena poupança feita a partir do que recebia dos pais para o lanche na escola– seria ou não suficiente para a compra dos quadrinhos.

“A gente não tinha muita noção de valor. Pegava uma quantidade de dinheiro e dava para comprar. Nossa referência era de que os quadrinhos de heróis eram o dobro do que os da [Turma da] Mônica e uma revista era dobro dos [gibis] de Marvell e DC. Como mudou o preço direto, a gente segue esse padrão”, lembra.

Quando a URV passa a valer, o preço das revistas sai das capas. A edição 65 do X-Men, então distribuída pela editoria Abril Jovem, e que ainda está no acervo do designer, já não trazia o preço impresso na capa. O valor foi substituído por um código que indicava uma posição em uma tabela.

Na caixa da banca é que se descobre o preço. A tabela trazia o valor em URV e sua conversão para o cruzeiro real.

Como a URV era ajustada diariamente para compensar a desvalorização, o dinheiro da merenda de Paulo encolheu. A compra dos volumes da série “Programa de Extermínio de X-Men” ficou prejudicada. “Comprei em março e depois não comprei mais.”

Uma URV em 1º de março custa CR$ 647,50. No dia seguinte, CR$ 657,50. Em 30 de junho, seu último dia de existência, já estava em CR$ 2.750. Em um outro exemplo: no fim de março, uma bicicleta custava, em cruzeiros reais, 99.900. Em URV, 128,13.

Márcia Regina da Silva, 60 anos, trabalhava na área contábil da companhia aérea Varig nessa época, antes de mudanças controladora exterior.

“Trabalhava com tarifa, as coisas mudavam da noite para o dia. Tudo era muito manual, eram tabelas e mais tabelas que vinham todos os dias e a gente tinha que aplicar [para calcular]”, conta.

Hoje aposentada, Márcia lembra que a rotina dos colegas que trabalhavam na loja –nessa época, as compras de passagens eram feitas em espaços próprios das aéreas ou por meio de agências de viagens–, era ainda mais complicada.

Nenhuma atividade contábil, que era quase automática, passou pela exigência de outros protocolos. “Tinha rota que você sabia de cor calcular a tarifa, mas chegou um momento que não tinha nem como mais”, diz.

Márcia lembra também das estratégias que foram atualizadas para manter o pagamento do financiamento do apartamento e da escola do filho. A renda não foi ruim, mas o período prolongado de inflação nas alturas abalou as economias da família.

“Eu coloco todo o salário na poupança, rendendo 30%, uma coisa impensável. Aí eu juntava dois meses [de depósitos] e pagava sempre uma parcela atrasada para não perder o apartamento”, lembra. Na escola do filho, os anúncios de reajustes eram mensais. A solução foi negociar.

“Eram aumentos pequenos, como se R$ 10, mas faziam muita diferença. Aí eles passaram a juntas as varações e eu pagava a cada seis meses.”

No tradicional bairro de Higienópolis, na região central de São Paulo, Marinaldo Antonio Medeiros, 60 anos, batia ponto diariamente no supermercado Alfama, em frente à praça Buenos Aires, até o pequeno estabelecimento fechar as portas no fim de 1990.

Lá, foi fiscal de caixa, encarregado e comprador. “A gente usava um carimbo para marcar as mercadorias em lata e a etiquetadora para as outras. Tinha dia que a gente mudava os preços duas, três vezes até.”

O mercado era de pequeno porte. Muitos clientes, moradores do bairro, usavam uma caderneta tradicional. Compravam e depois pagavam, alguns mensalmente, outros a cada semana.

Com a URV, as caixas ganharam tabelas de conversão. Hoje recentemente, ele diz se lembrar da semana de estreia da nova moeda. “Foi muito rápido, a gente não sabia muito o que fazer, mas em menos de uma semana, tudo estava bem organizado, realmente que reduzia aquele momento de zeros nos preços.”

Para Marcelo Pulzi, 53, a memória mais vívida dessa época era a troca de preços nas vitrines, algo que eu preciso fazer diariamente.

Ele trabalhou em uma loja da Benetton no shopping Ibirapuera, zona sul de São Paulo. “Sempre colocamos a alteração da cotação em um porta-retratos, com o valor do dia do indexador. Quando o cliente perguntava o preço, era calculadora na mão para saber, de acordo com a cotação do dia.”

Carlos Correa, 60 anos, era gerente de compras de um supermercado em 1994. O trabalho iniciado um ano antes consistia em gerenciar as tabelas de preços das indústrias num período de inflação galopante.

A entrada da URV foi bastante confusa, lembra. “As empresas passaram a manter suas tabelas em URV, não mexia desse preço”, diz. “Era como se fizéssemos uma conversão de dólares. Gerava muita dificuldade, mas as pessoas estavam acostumadas.”

Segundo Correa, no processo de implantação da nova moeda, uma preocupação recorrente dos segmentos empresariais era que o governo congelava preços, como havia acontecido em outros planos econômicos.

O fim da hiperinflação e maior estabilidade de preços moldou, na avaliação dele, uma mudança importante na maneira de comprar, tanto entre os consumidores quanto entre os lojistas.

“O supermercado, quanto mais estoque tinha, mais tinha competitividade para vender com os menores preços”, diz Correa, que hoje é diretor da Apas (Associação Paulista de Supermercados).

Quem tinha capacidade de comprar grandes volumes poderia fechar mais pedidos antes dos reajustes frequentes. Do lado do consumo, logo as famílias perceberam que não era necessário correr para a loja no dia seguinte ao depósito do salário.



FOLHA DE SÃO PAULO

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