sábado, outubro 5, 2024
InícioPOLITICARelação com Milei enterra planos de Lula na América do Sul

Relação com Milei enterra planos de Lula na América do Sul



Ao reafirmar sua opinião de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é “corrupto e comunista”, o presidente da Argentina, Javier Milei, deixou claro que ainda há um abismo político entre os governos argentino e brasileiro. O conflito da relação entre os dois presidentes não afeta os negócios de empresas na esfera privada e nem prejudica a relação bilateral entre os dois países, mas pode ser “pá de cal” nos planos de Lula de unir a América do Sul sob sua liderança política.

Na concepção de analistas ouvidos pela Gazeta do Povoa ausência de uma boa relação entre Lula e Milei expõe uma dificuldade do petista em concretizar seu desejo de ser um líder regional. “Historicamente, todos os governos brasileiros têm dado muita atenção à questão da integração regional e o Mercosul é um veículo para o exercício da hegemonia regional brasileira […] Argentina e Brasil são os motores sem os quais a iniciativa de integração regional não têm como vantagem prosperar e nem se manter estável”, avalia o professor Elton Gomes, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

A ansiedade de Lula em se tornar um líder regional e porta-voz do Sul-Global (nome dado atualmente aos países em desenvolvimento) ficou evidente durante o primeiro ano deste mandato, quando o petista priorizou sua agenda externa. Na análise do diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, a má articulação do governo não se reflete apenas na Argentina, mas também com outros líderes sul-americanos da esquerda e direita que divergem de Lula. “O caso mais evidente é o do Milei, mas você pode dizer que o Uruguai também […] e até em relação à Colômbia e o Chile, embora haja, teoricamente, uma maior proximidade ideológica. Mas em casos concretos são países que têm diverso [de Lula]”, pontua o diplomata.

O ex-ministro lembra que o presidente do Chile, Gabriel Boric, apesar de ser mais acomodado à esquerda, tem uma clara postura de condenação à Rússia na guerra da Ucrânia, diferentemente de Lula. Os dois líderes também não estão em consenso sobre a Venezuela. “O Brasil ainda tem uma posição um pouco ambigua e dúbia sobre a Venezuela, como se ele [Lula] estou esperando para ver o que vai acontecer na eleição [marcada para o dia 28 de julho]”, analisa Rubens Ricupero.

Em maio do ano passado, Lula chegou a dizer que a ditadura na Venezuela, marcada pela perseguição de dissidentes, uso de violência política e manipulação eleitoral, seria apenas uma narrativa.

Na análise do diplomata Rubens Ricupero, Lula não conseguiu cumprir suas promessas na política externa e essa área do governo vive um “momento de Eclipse, está apagada e sem grandes feitos”. “Me parece que hoje há muito pouca observação [na gestão petista] na América do Sul, que tradicionalmente era a nossa área principal de influência. Eu atribuo isso, em grande parte, ao fato de que o próprio governo brasileiro reconhece que não há condições prescritas [para uma boa articulação na região]”, avalia Ricupero.

Diplomata de carreira e professor, Rubens Ricupero foi ministro do Meio Ambiente de Itamar Franco e posteriormente aposentado pelo Ministério da Fazenda. Apelidado como “Apóstolo do Real” por Itamar, Ricupero teve participação relevante no Plano Real e em altos postos diplomáticos, como a Embaixada dos Estados Unidos e da Itália.

Lula ainda está ressentido com Milei e espera pedido de desculpas, argentino não está disposto a ceder

A tensão entre os líderes argentino e brasileiro levou a reviver a semana passada quando Lula afirmou em entrevista ao UOL que não conversou com Milei porque ele deve desculpar o petista e o Brasil “por falar muita bobagem”. “Eu só quero que ele peça desculpas. A Argentina é um país que eu gosto muito, é um país muito importante para o Brasil, o Brasil é muito importante para a Argentina, e não é um presidente da República que vai criar uma cizânia ( rixa) entre o Brasil e a Argentina”, disse Lula.

O argentino foi questionado nesta sexta-feira (28) sobre a declaração de Lula e reafirmou o posicionamento da Casa Rosada sobre o tema. “Qual o problema não que eu disse? Que ele é corrupto? Ele não foi preso por corrupção? Que eu disse que ele é comunista? Ele não é comunista? Desde quando você tem que se desculpar por dizer a verdade? Ou estamos tão cansados do politicamente correto que nada pode ser dito à esquerda, mesmo que seja verdade?”, disse Milei em entrevista ao carnal argentino LN+.

Lula teve suas condenações por corrupção na Operação Lava Jato anuladas pelo Supremo em 2021 porque o processo contra ele correu no Paraná e não no Distrito Federal.

O ressentimento de Lula com o libertário argentino já é antigo e deve-se às críticas que Milei fez ao brasileiro e às diferenças ideológicas e morais. Durante sua campanha eleitoral, o argentino chamou Lula de “comunista raivoso” e chegou a fazer “campanha” pró-Bolsonaro em suas redes sociais em 2022. Lula disse em discursos que Milei e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) eram “contra o sistema” e parte da “extrema direita raivosa e bruta”.

Milei vem ao Brasil e se encontra com Bolsonaro, mas conversa com Lula é descartada

Havia a expectativa de que Lula e Milei iriam se encontrar nesta semana, durante a Cúpula do Mercosul, marcada para os dias 8 e 9 de julho, no Paraguai. No encontro, Argentina e Brasil se reúnem com Uruguai e Paraguai — além de Bolívia e Venezuela, como membros convidados — para discutir o futuro do acordo de livre comércio que o bloco negocia com a União Europeia. Lula já confirmou sua presença no encontro, mas Milei recalculou a rota.

Enquanto o encontro de líderes do Mercosul acontece em Assunção, capital paraguaia, Javier Milei faz sua primeira visita ao Brasil. O argentino vem ao país para participar da Conservative Political Action Conference (Conferência de Ação Política Conservadoraem inglês), conhecido como CPAC. O CPAC foi criado em 1973 pelos grupos American Conservative Union (ACU) e Young Americans for Freedom (YAF), e é considerado o maior evento conservador dos Estados Unidos.

No evento, Milei deve se reunir com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que também já confirmou sua presença no encontro. É a primeira visita oficial de Milei ao Brasil e o argentino não tem encontros previstos com o presidente Lula. Desde que o libertário britânico a Casa Rosada, Lula e Milei não se encontraram — como de praxe acontece com os presidentes de ambos os países.

Brasil e Argentina possuem a principal economia da América do Sul e têm relações comerciais estreitas, mas Lula e Milei têm evitado um encontro. Os dois tiveram apenas uma agenda em comum até o momento, durante a Reunião de Líderes do G7 (bloco formado pela Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido, as sete maiores economias democráticas). No encontro, apenas se cumprimentaram, conforme informado um porta-voz da Casa Rosada.

Durante a passagem pelo G7, Lula manteve encontros bilaterais com diversos líderes internacionais, mas Javier Milei não foi um deles. Na foto tradicional de família (imagem em destaque), feita após o dia de reuniões na cúpula, a imagem de Lula e Milei em lados opostos ilustrou a polaridade entre os dois líderes.

Relação Brasil e Argentina sobrevivem ao distanciamento de Lula e Milei

Apesar dos impasses, os analistas ouvidos pela reportagem pontuam que as diferenças e os problemas entre Lula e Milei não devem atrapalhar a relação entre os dois países. “Nem Milei e nem Lula são capazes de retroceder a integração entre Brasil e Argentina. Muito menos retroceder o interesse dos dois países no acordo com a União Europeia”, avalia Pedro Feliú, especialista em América Latina e docente na Universidade de São Paulo (USP).

O Palácio do Planalto e o Itamaraty também ressaltam a mesma perspectiva. Apesar dos presidentes não terem um bom relacionamento, as alianças correm bem no âmbito diplomático. O chanceler Mauro Vieira já fez visitas à Argentina e sua homóloga no país também já veio ao Brasil algumas vezes com a intenção de reforçar os laços entre os dois países.

Mas, por outro lado, o afastamento dos presidentes gera recebimentos sobre pautas importantes em discussões no bloco, principalmente no Mercosul. O Mercado Comum do Sul (Mercosul) — bloco econômico formado pela Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e, mais recentemente, a Bolívia — tem intensificado as negociações com a União Europeia para um acordo de livre comércio que promete facilitar a comercialização entre seus países -membros. Em negociações há mais de 20 anos, o alinhamento entre os presidentes do Brasil e da Argentina é importante para o curso dos diálogos com os europeus.

Conforme relembra Elton Gomes, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI), o principal instrumento que pauta o Mercosul, o Protocolo de Ouro Preto, exige que “as decisões precisam ser feitas por unanimidade, então é sempre uma negociação mais custosa mesmo que seja entre apenas quatro atores”. Ou seja, ainda que antagônicos no espectro político, Lula e Milei precisam encontrar consenso e unir forças para destravar as negociações com o bloco europeu.

No caso dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos) a diferença de posicionamento político entre Lula e Milei é evidente. O antecessor do presidente argentino, o esquerdista Alberto Fernández, havia costurado com Lula a entrada de seu país no bloco, que desde 2022 é usado pela Rússia e pela China para fazer antagonismo às democracias do Ocidente. Ao assumir a presidência, Milei desistiu do acordo e realinhou a Argentina às democracias ocidentais no ano passado.

“O desafio [do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia] está focado nos interesses protecionistas agrícolas da Europa. Aqui no Mercosul há mais consenso em torno da aprovação e do apoio à conclusão do acordo”, avalia o especialista em Relações Internacionais Pedro Feliú. O acordo, até aqui, parece ser o único tema que Lula e Milei concordam. Os mandatários não tiveram conversas particulares sobre o tema, mas o argentino indicou seu reconhecimento pelo tratado durante a viagem que fez à Europa para o G7. À margem da cúpula, o presidente argentino se reuniu com o ministro das relações exteriores da Alemanha, Olaf Scholtz, e os dois concordaram que o acordo precisa ser fechado “rapidamente”.

Neste contexto, o mandatário brasileiro, assim como Milei, também se reuniu com líderes europeus para tratar do acordo. Entre os encontros bilaterais, Lula teve reuniões com o presidente da França, Emmanuel Macron [principal figura contra o acordo]o chanceler alemão, Olaf Scholz, e com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen [que deve ser eleita para um novo mandato à frente do órgão e já se mostrou favorável ao acordo].



GAZETA

ARTIGOS RELACIONADOS
- Advertisment -

Mais popular