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Contratos de eólicas no Nordeste sofrem críticas – 08/10/2024 – Mercado


José Lopes Galvão pede para ser chamado de Zé de Elias no jeito nordestino de designar que se chama José e é filho de Elias. A terra em que vive, ao lado do Assentamento Acauã, em Santana do Matos, Rio Grande do Norteera das suas avós.

O tempo todo, 24 horas por dia, vê e escuta um aerogerador ao lado de sua casa. Ele assinou contrato e arrendou a propriedade do Complexo Eólico Acauã.

“Assinei na besteira. Estou arrependido. Nem sei direito quanto vou receber. Eles não me falaram, não”, afirma, sentindo-se pior ainda com a lembrança da promessa de que embolsaria “muito dinheiro” com aquele acordo.

O rendimento até agora tem sido de R$ 300 por mês. Considere um valor “ridículo”. Mais ainda quando cita o barulho que o aerogerador faz à noite. Seu filho coloca pedaços de papel higiênico no ouvido como tentativa desesperada de conseguir dormir.

Zé de Elias é um exemplo do problema que ronda o modelo de parques eólicos e solares no Nordeste brasileiro: os contratos para locação de terras de pequenos agricultores. Uma queixa que movimenta associações de moradores, ONGs, sindicatos, pesquisadores e o Ministério Público Federal.

“É uma Serra Pelada dos ventos”, opina Fernando Joaquim Ferreira Maia, professor de Direito da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e integrante do projeto Dom Quixote, que analisa questões da transição energética. Uma referência é ao garimpo a céu aberto no Pará que abriu uma corrida sem lei por metais preciosos.

“Os contratos são a mola de tudo isso. A empresa negocia diretamente com os agricultores numa desproporção, uma assimetria muito grande. A reclamação vem depois”, completa.

Esta é a palavra mais usada por especialistas e advogados ouvidos pela Folha no Nordeste, quando o assunto eram os acordos que possibilitam as instalações de parques eólicos e solares: assimetria. Os documentos aceitos por agricultores favoreceriam apenas uma parte.

“É quase um colonialismo”, critica José Godoy Bezerra, procurador do Ministério Público Federal da Paraíba. “De um lado, há empresas com conhecimento técnico e capacidade econômica. De outro, agricultores analfabetos, com zero conhecimento sobre energia. A boa-fé contratual não existe. É um processo o tempo todo atravessado, de má-fé. Isso não é energia limpa.”

O Nordeste vive expansão de parques eólicos e produz 93,6% de toda a energia proveniente de ventos usados ​​no país.

Na instalação de um parque, primeiro há a necessidade de medir os ventos ou a capacidade fotovoltaica (dos raios do sol) do local. Isso pode levar mais de um ano. Quando a previsão é constatada, as empresas precisam de terrenos para colocar o projeto de pé.

Até a metade de 2023, o Brasil tinha 890 parques eólicos instalada em 12 estados. Desse total, 85% estão no Nordeste. O mercado já recebeu R$ 300 bilhões em investimentos. A avaliação das companhias é que até 2030 serão colocados mais R$ 175 bilhões em novos projetos. Os investimentos em usinas solares, desde 2012, foram de R$ 2,8 bilhões.

Os governadores da região estão interessados ​​no assunto porque, além da arrecadação estadual, há o histórico de crescimento local. Levantamento da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica) aponta que o PIB (Produto Interno Bruto) das cidades que receberam parques cresceu 21% a partir da instalação e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) aumentou 20%.

Ainda segundo a entidade de classe, cada real colocado em energia eólica resulta em mais R$ 2,9 na economia local.

Pode ser uma realidade no mercado macro, mas não é reconhecida por moradores de pequenas comunidades ou agricultores afetados por empreendimentos.

“Quando eles [da empresa] chega, a lavagem cerebral é grande. O tempo passa e os problemas começam. Os problemas existem e quando a coraleira fica grande, a empresa faz uma reunião e promete que vai resolver para todo mundo ficar quieto. Não quero divulgação. A maioria das reclamações é quando acontece atraso de pagamento”, afirma Geraldo (nome fictício), morador de Junco do Seridó, na Paraíba, e arrendatário de terra para o Parque Eólico Serra do Seridó.

É algo repetido para a reportagem. Cada vez que acontece uma reclamação pública, um funcionário do parque vai à comunidade garantir que haja soluções e pedir que aquilo não se repita. Nem sempre as promessas foram cumpridas.

“No dia seguinte alguém vem até minha casa, pergunta por que falei mal da empresa e que não posso fazer isso”, disse uma moradora do seridó paraibano que pede para não ter o nome divulgado.

Os contratos de locação de terras são longos. Variam entre 30 e 50 anos. Valem para os herdeiros, caso o proprietário morra no decorrer do acordo. Há questionamentos sobre a perda do uso da terra pelo agricultor porque a companhia vai determinar quais áreas serão utilizadas da propriedade e quais trechos serão liberados para cultivo.

Existem também as reclamações sobre tal assimetria, a renovação automática, a possibilidade de desistência apenas pela empresa e, principalmente, o valor pago.

“Esse é um ponto muito sensível. Há casos de R$ 300 anuais. São R$ 25 meses na primeira fase de instalação. Isso pode levar dois ou três anos. Há uma restrição ao uso da terra. Só pode plantar e construir o que A empresa permite. Você é o dono da terra, mas perdeu autonomia no Ceará, foi colocado. [aos agricultores] a nomeação de cavar o solo”, relata o advogado Rárisson Sampaio, especialista em energia e professor da UFPB.

A mudança no patamar das remunerações acontece apenas quando a energia começa a ser negociada no mercado. Zé de Elias alega que o aerogerador em sua propriedade está em funcionamento há mais de um ano, mas ele continua a receber R$ 300 meses.

“O retorno para o agricultor é de 1,5% do que é vendido, mas isso é um valor global do parque. Será dividido de acordo com os aerogeradores que estão em cada propriedade. E é o que a empresa diz que vendeu. Não há aferição”, ressalta o procurador Godoy.

O Ministério Público solicitou ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ao governo paraibano, no ano passado, para fiscalizar os contratos.

“Nossa visão é mais no macro. As ações que apareceram até agora contra as são iniciativas individuais, não algo coletivo. Até porque os contratos são entre privados”, completa Godoy, expondo o maior problema para quem reclama da forma como foram feitos os contratos: são acordos entre empresas privadas e indivíduos.

A assessoria do Incra informa ter publicado Instrução Normativa 112, em dezembro de 2021, para regulamentos a anuência do uso de terras de assentamentos para investimentos de energia. Esta apresenta todos os documentos, outorgas e licenças necessárias para autorização do projeto. Mas nem todas as terras usadas para parques eólicos ou solares são espaços usados ​​para assentamentos da reforma agrária.

Existe também a possibilidade de o agricultor arrendar a sua terra mas, por decisão da empresa, este não receber nenhum aerogerador. Neste caso, durante todo o contrato, ele receberá o valor equivalente ao pagamento durante a construção.

“O avanço das energias renováveis ​​de fonte eólica e solar no Nordeste brasileiro, com seus impactos múltiplos e invisibilizados sobre as comunidades, é mais uma faceta do que chamamos de racismo. Reproduz a exclusão de população diretamente afetada pelos empreendimentos. Verifique-se uma sobreposição de interesses econômicos privados em detrimento do bem-estar de comunidades no âmbito da exploração de energias renováveis ​​no Brasil”, diz relatório do Inesc, ONG que trata de políticas públicas e direitos humanos, publicado no ano passado.

Os relatos ouvidos pela Folhaem diferentes regiões da Paraíba e do Rio Grande do Norte, têm alguns pontos em comum. O principal é uma abordagem. No início, era um representante da companhia, gravado, que fazia promessas de prosperidade e de uma renda que garantiria o futuro da família. O pedido era quase sempre para manter o contrato em sigilo após assinado. O documento não poderia ser levado a vizinhos, sindicatos ou associações de moradores.

Quando a estratégia se tornou muito conhecida, eles passaram a ser líderes comunitários encarregados de falar bem dos parques. Nos últimos tempos, a pressão passou a ser de governos municipais, especificamente também na arrecadação do ISS (Imposto sobre Serviços).

Uma agricultora que se decidiu a concordar disse que um dos argumentos para tentar convencê-la foi a obrigatoriedade de concordar porque seria pelo bem da humanidade.

“As empresas também usam os contratos como banco de terras. Arrendam bem mais do que vão usar agora porque no futuro já têm o espaço garantido e evitam a concorrência”, analisa o advogado Claudionor Vital, 55, sócio da Centrac, Centro de Ação Cultural da Paraíba, que atua no semiárido do estado.

Ele também critica que as companhias avaliam quanto querem pagar pelas terras sem levar em conta o valor agregado mais importante: o vento ou o sol.

Questionado pela reportagem, o Governo da Paraíba, por meio da Sudema (Superintendência de Administração do Meio Ambiente), disse que os contratos entre empresas de parques eólicos e solares e pequenos agricultores são firmados entre particulares e o Estado não tem poder para interferir.

O Governo do Rio Grande do Norte declara atuar em “várias frentes com articulação multidisciplinar para mitigar os eventuais impactos dessas atividades” para que a transição energética ocorra da maneira mais justa possível.

A Abeeólica informa liderou um grupo de trabalho há dois anos para discutir e compartilhar boas práticas “e facilitar ações para solucionar as questões levantadas por comunidades vizinhas aos parques.” A entidade considera que as reclamações são “minorias em relação ao número de parques no país” e que as empresas cumprem a legislação vigente, “inclusive como forma de segurança jurídica e financeira quanto aos altos investimentos feitos nos empreendimentos.”

A Absolar (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) declara que a implantação de grandes usinas solares no Brasil atende a rigorosos requisitos legais e que são realizadas interações com as comunidades dos territórios e com os gestores públicos. Segundo a associação, os associados são incentivados a atuar nos mais elevados padrões internacionais que consideram que as “tratações locais são justas e transparentes”.

Responsável pelo complexo eólico Acauã, no Rio Grande do Norte, a Aliança Energia afirma que os contratos de locação foram negociados com os proprietários das terras, que nenhum possui cláusula restringindo direito de associação ou representação jurídica. “A base de pagamentos, após a entrada na operação do parque, é o percentual da receita e da área do imóvel”, diz a empresa.

Operadora do Parque Eólico Serra do Seridó, a EDP diz que seus projetos “atendem a todas as exigências dos órgãos reguladores e ambientais, garantindo a conformidade com as normas vigentes”. Segundo a companhia, durante uma fase pré-operacional, uma área continua disponível para uso dos proprietários, enquanto há estudos técnicos necessários. “Ao longo da operação do parque eólico, mantemos uma convivência harmoniosa com as atividades agropecuárias (…) respeitando os requisitos de segurança inerentes à natureza do empreendimento de geração de energia elétrica”, completa.

Consulado pela reportagem, o Ministério das Minas e Energia não respondeu até a publicação desse texto.

“Sabe qual foi o benefício que ficou para as pessoas? Nenhum. O legado foi dos impactos. Ficou a zoada”, constata o melancólico José Antoniel de Lima, 37 anos, presidente da Associação Assentamento Acauã, no Rio Grande do Norte.

“Zoada” é o barulho que os aerogeradores fazem dia e noite.



FOLHA DE SÃO PAULO

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